Na Síria, quem ganha com a retirada dos EUA?

Contra a opinião dos seus principais conselheiros de segurança, Donald Trump anunciou esta quarta-feira a retirada das forças dos Estados Unidos (EUA) na Síria. Qualquer coisa como dois mil soldados. A ordem presidencial foi apoiada numa sustentação que faz manchetes mas levanta muitas dúvidas quanto à sua veracidade: a derrota do autoproclamado Estado Islâmico (EI) em território sírio. Já lá vamos.

Desde logo, a abrupta saída de cena dos EUA, que se meteram no terreno para lutar contra os radicais islâmicos, vem interromper outros dois interesses assumidos da liderança americana para a Síria: a resolução da sangrenta guerra civil que se arrasta há anos e a contenção da influência iraniana, que apoia Bashar al-Assad. Foi sobretudo nesse sentido que o secretário de Defesa Jim Mattis procurou dissuadir Trump de comandar a retirada.

Por outro lado, o Pentágono também tentou alterar os planos do Presidente porque a decisão trai  um aliado estratégico no terreno – os curdos. E estes têm combatido jiadistas, com a chancela dos EUA, ao ponto de já controlarem cerca de um terço do território sírio. Sem os americanos na equação, está aberto o caminho para uma campanha mais agressiva da Turquia contra as forças curdas. É esse o grande plano de Erdogan.

As coisas, no entanto, complicam-se ainda mais noutros patamares e não é difícil identificar quem ganha mais com a retirada. A começar por Assad. “A Casa Branca sinaliza agora que a Síria já não é uma prioridade militar”, escreve o Washington Post. E isto deverá dar “mais confiança a Assad e aos seus aliados principais – Rússia e Irão”, conclui o jornal. Ora, nem mais. Com os EUA fora de cena, russos e iranianos possuem agora livre-trânsito para aumentarem a sua influência na região.

Regressando à questão do EI, cria-se um vazio. Josh Rogin, colunista do Post, afirma que “Trump está a repetir o mesmo erro que (…) Obama no Iraque: retirar e deixar um vácuo que o EI e outros extremistas certamente irão preencher”. O grupo terrorista perdeu a esmagadora maioria do território que possuía na região. Mas ainda existem milhares de jiadistas na Síria. E sem americanos, o risco de se reagruparem não deve ser descurado.

De uma assentada, Trump conseguiu ceder passagem, sem cobrar nada, à influência da Rússia e do Irão no Médio Oriente e abdicar de um lugar à mesa em eventuais negociações para a paz na Síria. Um “hara-kiri” geopolítico que ainda está a ser descortinado.

Iémen: uma paz urgente

Um relatório recente da organização humanitária Save The Children pinta-nos o retrato do inferno em que mergulhou o Iémen: cerca de 85 mil crianças morreram de fome nos últimos três anos de conflito naquele que é o estado mais pobre do mundo árabe. A estimativa foi avançada com base em dados das Nações Unidas (ONU). O Programa Alimentar Mundial acredita que 14 milhões de iemenitas estão à beira de morrer de fome.

A realidade é crua: o Iémen sofre a pior crise humanitária dos últimos cem anos. À escala mundial. Pelo menos 10 mil pessoas morreram desde a entrada da coligação liderada pela Arábia Saudita, que apoia o governo contra os rebeldes “houthis”, apoiados pelo Irão. Mas estima-se que estes números são muito superiores.

Dizer que a paz é urgente parece óbvio. Mas o diálogo entre as os actores em jogo tem sido feito ao sabor das balas. E das bombas. As partes envolvidas nos combates, todavia, já sinalizaram nos últimos dias que marcarão presença nas negociações, tuteladas pela ONU, e agendadas para a próxima semana, na Suécia. Ainda em Setembro, uma tentativa de negociar a paz caiu por terra, quando os rebeldes “houthis” recusaram comparecer numa cimeira em Genebra, acusando a ONU de não cumprir com as exigências do grupo.

Seguiram-se então novas investidas da coligação chefiada pelos sauditas em Hodeida, sob controlo rebelde. “Grupos humanitários alertaram que a cidade (…) está em risco de ser ‘obliterada’” por causa dos combates, refere a estação televisiva Al-Jazeera.

A esperança de travar a violência pode ter ganho outro fulgor. Também esta semana, o Senado controlado pelos Republicanos aprovou um projecto de lei para forçar os Estados Unidos (EUA) a cortar o apoio aos sauditas no Iémen, no espaço de 30 dias. Foi uma chapada de luva branca ao Presidente Donald Trump e, sobretudo, à forma como tem lidado com Riade. Porque, uma explicação para este consenso bipartidário, está na forma como Trump respondeu ao grotesco assassinato do jornalista Jamal Khashoggi, encomendado, diz a CIA, pelo príncipe Mohammed bin-Salman. O líder da Casa Branca tem preferido olhar para o lado, optando por destacar a quantidade de dinheiro que os EUA ganham com a venda de armas à Arábia Saudita.

Triste que seja esta a premissa na origem da proposta aprovada pelo Senado face ao sofrimento incalculável no Iémen. Os norte-americanos têm uma importante quota de responsabilidade na devastação do país. Cooperam com os sauditas ao nível da informação, ao venderem armamento e munições e, até há não muito tempo, “abastecer aviões no conflito que matou dezenas de milhares e deixou milhões a sofrer de fome e doença”, afirma o site de notícias Vox. Além disso, em Março passado, uma iniciativa com o mesmo propósito foi travada. No Senado.

Apesar do projecto de lei votado esta semana, uma resolução semelhante ainda tem de passar na Câmara dos Representantes. E aí, as contas republicanas não são tão unânimes como na outra ala do Congresso. A Casa Branca já ameaçou vetar. Mas “um projecto de lei que invoque a ‘Resolução sobre os poderes de guerra de 1973’ na Câmara tem privilégios especiais que o tornam imune a um veto presidencial”, esclarece a plataforma Vox.

A reação dos senadores contribui, no entanto, para relançar o debate sobre o envolvimento americano no conflito. E essa reflexão é capital para pressionar o cessar das hostilidades que têm um efeito implacável na vida dos iemenitas, que não conseguem ter acesso a condições básicas para sobreviverem. A paz é urgente não só pela realidade de uma população que lentamente caminha para a morte, mas também por riscos que, nos casos de outros conflitos, já nos ensinaram lições. Nesta guerra doméstica que assumiu proporções regionais pelo envolvimento de sauditas e iranianos, a  vulnerabilidade do Iémen fomentou ainda, recorda a estação britânica BBC, a instalação de grupos terroristas, como o autoproclamado Estado Islâmico. A comunidade internacional não pode fechar os olhos.